Eu versejo por todos os tempos e templos, por todas as épocas, tal qual um vampiro reinventando sua imortalidade... quero beber-te vermelho e tornar-te imortal... Boa Morte!

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Minha Presença Guia



Minha Presença Guia, nesta hora nossa de cada dia, nesse instante de enlace, deponho em sua guarda meu flanco exausto, minha alma marcada, minhas emoções extraviadas.
No escuro, de olhos cerrados, cicatriza minha vista cansada de tantos brilhos falsos: gemas sem valor e espectros desumanos; apazígua minha mente.
Despe-me da altivez que me envolveram tantos elogios. Regressa-os aos seus remetentes que nem queriam os ter proferido.
Escusa-me das decepções, dos desamores, dos sonhos defeitos... dos que prometeram para sempre e voltaram nunca mais.
Desterra os cativos, exorta os nocivos e exaure minha consciência no silêncio desse instante, desta eternidade poente.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Orion




Os pedaços de vidro no chão não são os estilhaços dos espelhos ferozmente quebrados após o adeus, mas o resultado dum golpe preciso, cravado em cheio num coração - partido, despedaçado, sincopado.
O sangue nos lençóis, nas portas, nos cantos, não jorra daquele coração ferido sobre a cama, mas do pranto que corre incessante por dias, noites, meses - úmido, vermelho, amargo, engolindo um corpo acuado.
O frio que faz gemer e encurvar os membros, não sopra da janela escancarada ou da porta destrancada, entreaberta; rasteja pelas entranhas duma alma perdida, sem esperanças, repleta de espectros de sonhos desfeitos; congelada, imóvel, encarcerada em sua própria desventura.
O vulto que acaba de surgir alto no cômodo não se projeta daquele ser que agoniza na cama em posição fetal a espera dum balsamo para aplacar suas dores, mas de outrem - daquele que se reergue solene e espalha cuidadosamente gasolina sobre seu próprio corpo morto, em todos os cantos, lençóis manchados, livros, cartas, fotografias...

O forte odor repulsivo sentido, não emana da líquido inflamável atiçado, mas das chamas que consomem implacáveis aqueles cacos de lar, aquele sangue, aquele frio, seu próprio dorso.

Uma última olhada, única lágrima. Nenhuma dor.
O barulho às costas não emerge da construção que desaba consumida pelo fogo, mas das vítimas desesperadas. Todas mortas. Incendiadas. Aprisionadas a um passado sem progresso, sem horizontes, de cinzas e nada mais.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A chuva


Não chore. Repito sussurrante. Digo àquele ouvido sem vibração, àquele corpo sobre o meu - inerte, àquela pele quente que me aquece, murmuro e não ouço resposta, então novamente - não chores... Enxugo o pranto. Chove. Água por toda parte, por todo o corpo, todo o quarto, pelas ruas. Chove. Choro... Não chores!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

EPARREI


Do dia de sua chegada lembro do vento, do tempo fechado e daquele pressentimento que se tem na iminência dos grandes acontecimentos. Foi assim que a recebi - como um presságio. No então de mim arvore revolvida, céu carregado, noite no dia, ventania, encontrei-a esperando-me pacientemente, como se soubesse daquele encontro. Não me abraçou, sequer dirigiu-me a palavra. Apenas, deferente, levantou-se num cumprimento sutil e sussurrou-me seu segredo. Nunca mais foi vista. Dela - nada se sabe ou se conversa. Com ela - poucos se aventuram. Para ela – a coragem de vencer e o fronte de batalha. Reluzente sua espada, ofuscante sua dança, implacável sua ira. No caminho de quem pisa forte a marcha da Senhora, a certeza mansa do feitio que lhe protege. EPARREI OYÁ.

Salve 4 de dezembro!!!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Ciranda.


Ainda sou a criança de olhos atentos, passo manso e fala assustada. Posso ser vista escondida atrás das portas, solitária, indefesa - olhos arregalados, respiração forte, coração aos pulos.
Sou aquela quieta no canto das festas a espera do momento em que o vacilo dos demais possibilite uma estranha alegria reinar no salão. A de choro fácil, pensamentos adultos e olhar perdido no parque. Aquela que teme os mais fortes e sem motivo aparente se chega aos familiares para que não saibam da sua fragilidade.
Sou a criança que barganha ser aceita exigindo-se
afinco em destrezas desconfortáveis para satisfazer os demais. Sou infante, pequena, assustada, chorosa, sem conto de fadas, sem heróis... Órfão de infância, de tranqüilidade, de liberdade.


Nasci velha num velho mundo novo. Permaneço entre brinquedos, papéis coloridos, aquarelas, gritando ser criança para quem sabe alguém um dia consiga me ensinar a brincar de ser feliz.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

21

Desta encruzilhada posso ver o mercado e isto já me basta. De lá me chega e atiça o aroma ativo das moças suadas, dos animais, das frutas, legumes e vegetais... Não há um só charuto aceso do qual eu também não fume. Ou mesmo pinga destampada que eu não beba. Tudo aqui deste cruzamento.
A cidade dorme sob minha vigia e acorda com o meu repouso. Daqui consigo acompanhar a direção de cada passo, ouço suas pancadas e sei de todos. O da pisada firme e coração virtuoso, o que caminha torto e engana aos outros, a da chegada mansa e vida vadia... Todos. Se chegam e ficam, passam corridos, param e olham, temem, enfrentam, seguem. Uma cruz pra cada pé e um guia pra cada cabeça.
Ainda que me ignorem, sei deles. Mas o que gosto mesmo é das mulatas que, servindo a seus senhores, passam e me deixam presentes. Se da água das talhas mal equilibradas em suas cabeças não me dão beber, faço com que furtivas caiam ao chão. Se dos alimentos carregados em seus mocós não me deixam comer, um tropeço os trazem direto às minhas mãos. Hão os que de bom grado me servem à satisfação, destes como e bebo, sem lhes dar um tostão.
Nenhum dia deste caminho é igual, somente o próprio caminho. As vezes reparo os mesmos casaris, o mesmo calçamento e a mesma escuridão. Não consigo deixá-los porque há o mercado; de lá vem meu alimento, minha cachaça, minhas moças. Não preciso caminhar. Quem sabe eu tenha esquecido das pernas que tenho e viva do andar dos demais? Quem sabe? Pouco me basta, afinal sou este que se vê a esgueira nas esquinas de olho em tudo e todos, me servindo de suas andanças, incentivando, punindo, obstruindo, apoiando, censurando, gargalhando, às vezes até amando. Faço deste entreposto um assento, uma razão e um meio. Daqui desta encruzilhada - Encontros e desenlaces. Quatro caminhos. Dois senhores. Muitas escolhas e uma certeza - o passar e o eterno correr da vida.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Juliana

Reuniu caixas, encheu taças, desligou o telefone e a quem a porta lhe bateu, por si mesma disse estar ausente.
Recomeçara o ritual. Fotos, postais, mapas, rabiscos, bilhetes, ingressos, guardanapos, panos e livros rodeavam-na naquela penumbra à luz do lusco-fusco claudicante das velas cenicamente colocadas para o momento. Exortava-se.
Porta abaixo escorria pranto, corpo e soluço numa entrega que buscava tateante, móveis para quebrar, objetos para jogar e uma música que mais lhe fizesse chorar. Perseguia um contratempo onde toda dor fosse menor e mais supérflua que a sua. Onde sua angústia seria merecedora de um estrago material de proporções tamanhas ao quanto estava operando.
Lascar, quebrar, derrubar, gritar, chorar, espernear... A cíclica destruição shiva deveria reinar em sua cabeça naquela noite.

Quando os braços buscam-se e o choque é invocado como toque, razões não mais são evocadas: resta apenas a vontade do prejuízo. Nervos e carências. Uma funesta cena de drama.

Quis crer serem verazes suas razões, ser dor toda aquela hipérbole, ter desesperança e acabar consigo dum único golpe. Restou vencida. Exausta e Bêbada.
Caiu Juliana, numa sala quebrada, num canto escuro de uma casa alugada, sua vida arrasada, suas memórias espalhadas, destroçadas. Acordaria pedante, constante, confiante, sairia à porta e não voltaria a ver-se nunca mais.