Eu versejo por todos os tempos e templos, por todas as épocas, tal qual um vampiro reinventando sua imortalidade... quero beber-te vermelho e tornar-te imortal... Boa Morte!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Amiseração.

Um livro fechado: era a única imagem possível dele. Aquele do qual se esperou em vão... Cem número de páginas hermeticamente cerradas à capa, sem autor, título ou destinação.
Histórias não vividas, tramas desperdiçadas, personagens carentes do afeto, ou mesmo o ódio convulsivo, indignado e manso, dos inexistentes legentes... Um conto nunca contado.
Possibilidades findas sob o negro opaco daquela encadernação aprisionante... Monotonia irascível e estéril.
Tudo ali diante dos olhos sob a escrivaninha, empoeirado, gritando o silencio das laudas não viradas, sobrepostas, suscetíveis, inanimadas, transbordantes de possibilidades, à mão. Irremediavelmente sufocado, sem por vir, a espreita ou espera daquele que, embora possuísse o domínio, apenas assistia, como num espetáculo, cruel, frio, sangrando, o ocaso de sua genialidade.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

De Cima.

Não eram só os sons das alpercatas de couro a atritar as pedras gastas da ladeira, nem mesmo o ritmo quase caribenho que, vez por outra, emanava das tabernas daquele centro histórico, quiçá o vento almíscar de maresia que subia por entre os casaris coloridos... Sob um forte aroma citroadocicado que ascendia o terreno íngreme de encontro aos descendentes, sentia-se frio o suor quente que escorria manso por têmporas e nucas, recebia-se os brejeiros sorrisos cabrochos, vislumbravam-se os quadris ritmados por gingados hereditários, os olhares convidativos das esquinas, a precisão do talhe dos corpos mulatos... Descendo a ladeira e subindo a temperatura, como que mais e mais úmido e tépido. Mantra, Incenso, dança, sensualidade. O verão chegara àquela terra e os corpos buscavam à beber-se numa sede infernal de vida. A única certeza, entretanto, era a descida, nada mais.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Back to Black

Quedada, lânguida, sôfrega e tresloucada cantarolando o último jingle do que seria a Amy Winehouse da época dos canaviais, a Sinhazinha borda tediosamente mais uma musselina no alpendre do paço da casa grande.
De súbito, passado vulto pela escadaria, se utilizando da destreza disfarçada que lhe é peculiar, adentra por entre as colunas do avarandado o escravo: aquele do qual ela exige fortuita e intensamente, desde seus doze anos, a prontidão no exercício de serviços somente realizados no silêncio do breu da noite, já que o desempenho afobado do marido, por mais ofensivo e esforçado, só a fazia bocejar.
Ela espicha seus olhos felinos por entre as mechas louras do sedoso cabelo zelosamente escovado pela mucama, mulher do criado que caminha em sua direção: pisada certa, odor de mata, tronco riste, tez quente, membros prontos, lábios mornos e olhar castamente erótico trazendo-lhe um envelope carmim. Uma carta; informa-se em seguida.
Qual não é sua surpresa ao sabê-la do ultimo caixeiro viajante que por ali passara - O Libanês, que em idos pretéritos fizera sua felicidade nos canaviais da fazenda e se fora lhe deixando saudosa. Um turbilhão de emoções povoam sua libido abandonada... Ao retomar-se acompanhada, fecha brusco o envelope a fim de poder saborear-lhe o conteúdo oportunamente, e então, já que na presença do empregado, disfarça o rubor e retoma sua brejeirice hipócrita, teatralmente arquitetada por anos.
Já mansa, roçando suas rendas no calhamaço do escravo, ela se levanta avaliando cada centímetro da máquina prostrada à sua frente lhe ofertando mais que um serviço: uma devoção, guarda a encomenda com uma das mãos e com a outra, contundente, leva às nádegas rígidas do Preto uma vigorosa palmada, recebida com o sorriso e obediência de quem lhe possui comissiva em suspiros e arroubos de luxúria e soberba. Agora o olhar felino é dele que num meneio de cabeça lança-lhe a certeza da posse noturna na sua senzala. Se retira silente, acabrunhado e veementemente excitado, sentindo rijo o negrume daquela MISCIGENAÇAO
.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Reverso

Mergulhei no mundo do indizível, do tentado... no mundo das idéias fugidias, dos papéis em branco e da caneta em punho. Busco tornar dito o impermeável estar abstrato. Esforço-me em tornar visão a Quanta da idéia e a semi-ótica da vida; o arrepio que me toma frêmito em completude ao inteligir do instante... todos os mundos... todos os signos que povoam minha mente mesmo após o sono... como se a missão não me permitisse escolha, senão penetrar nas horas dos segundos a precisar o que é ter estado do lado de lá.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Epíteto

Sabe aquela sensação indizível que se manifesta organicamente a espreitar sua destreza e precisão ordinária? O motivo do olhar desinteressado, do corpo fatigado e da pele suada envolta ao lençol da noite anterior. O ´sem razão` do seu dia de feriado. As causas do embotamento de seus sentidos. O que não se precisa, mas merece afinco ao faze-lo. O sentimento, o cansaço, o olhar turvo, o calor, o tédio... vale a tentativa de domina-lo conceituando-o. Nomeando a alcunha da repercussão de um dia ensolarado de tempestade.

Sra. Springs

Seu espírito jovial e aparência frágil deviam ter despertado a empatia de todos. Apesar de ter completado 91 anos a exatas duas semanas atrás, aquela Senhora que acabara de chegar e instalara-se ao meu lado na festa de comemoração do aniversário da Telma suscito-me uma atenção sobremaneira destoante daquela dispensada aos recém chegados num grupo tacitamente convencionado como sendo somente atrativo para jovens; mais precisamente àqueles que não ultrapassaram a margem temporal dos 30 anos.
Quando da sua chegada estava instalado no patamar superior da casa da Telma, então anfitriã e aniversariante, local onde tinha contato com todos os recém chegados, além dos que já se encontravam por lá.
Era uma tarde ensolarada de setembro e deleitávamos a brisa marinha que por hora perpassava nossas faces. Tudo contagiava, desde a alegria efusiva dos amigos à descontração dos desconhecidos; tudo tomava-me tépido, como que embalado pela maresia das certezas confirmadas pelo ambiente seguro e comodamente feliz.
Qual não foi minha surpresa quando dei a embaraçar-me com uma sutileza oculta da até então aprazível Senhora. Certo de que toda inquietação fantasia-se em mesura, tentei recobrar aquele estado ameno que experimentara antes de deter-me mais uma vez, desta vez mais incisiva, naquela figura senil. Virei e continuei com minha alegria pontual.
A comida já estava a ser servida e todos se encaminhavam aos balcões do bufe quando mais uma vez peguei-me a esquadrinhar a pretérita figura. Analisava seus hábitos e aparência - gestos vigorosos, olhos atentos e perspicazes, fome invejável, vestimentas coloridas e sorriso fácil. Aparentemente modesta e afável. Mais uma vez retomei a velha postura preparada para a ocasião: sorriso e embriaguez.
Toda minha predisposição começava a desvanecer, a festa parecia suspensa e distante do local para o qual me encaminhava parado atento àquela Senhora. Durante o fim da celebração eu já estava exausto de investigar os motivos reais do meu embaraço, as justificativas para minha súbita tensão.
Por mais longas três horas eu estive ali e não estive em lugar algum. Perdi-me no ´sem fim´ da encantadora Senhora, nas entrelinhas dos seus motivos e relações fantasiados pela minha mente inquieta. Tinha a impressão de pedir-lhe algo sem que houvesse resposta.
A festa acabou e deparei-me aflito com sua iminente saída. Apressei-me em encontrar-lhe para que tocando-a pudesse compreender aquele desconforto. Meu toque repercutiu em sua tez flácida como uma gota num lago ameno. Com um rápido meneio de cabeça ela virou, parecia não ter se incomodado com o toque, mas agia como se soubesse que alguém a aguardara logo atrás. Não preciso destacar que este alguém era eu. Tão logo fui brindado com seu olhar, dispensei à Senhora toda a simpatia e cumplicidade que couberam num sorriso desnecessariamente forçado. Queria acabar com aquela situação. Eu, em plena festa de aniversário da Telam sentindo-me estranho por examinar uma idosa de noventa e tantos anos, alheio a seus motivos, encantado com algo indescritível.
Até hoje não tenho a resposta ao que aconteceu após aquele olhar, estive em sua presença íntima, mas não me saciei. Tive a impressão de ter-me visto naquele lago azul cristalino. Estive horas e dias mergulhado ali durante aqueles segundos interrompidos pelo mesmo meneio que me possibilitou vê-los. O meneio que a levou para nunca mais. Ela se virou e atravessou a porta.
Sua história, claro, após algumas horas chegou a meu conhecimento, mas não se destacou dentre as muitas que conheço. Talvez por isso tenha me incomodado. Travei contato direto com a imagem de uma pessoa banal, uma história medíocre. Observei a corrosão do tempo e a impiedade deste para com os sonhos de uma pessoa entregue. Ela contentar-se-ia com as migalhas de que se vale o piedoso para regozijar-se intimamente sobre os mais fracos. Temi aquele fim.
Apenas uma mãe abandonada por quatro dos seus cinco filhos; só não pelos cinco porque o caçula não conseguiu se firmar e precisava de sua pensão. Uma criança velha que sonhava em ser bailarina. Uma jovem anciã obrigada a trancar seus estudos para criar os filhos, já que o marido morrera muito jovem e lhe deixara sem nada. Uma adulta senil e fatigada pelo peso do esfregão que utilizava em seu trabalho. Uma velha decrépita que vorazmente alimentava-se alheia a uma festa meticulosamente preparada para celebrar a vida. Não a sua. Trivial e assustador.
Vi naquela tarde o crepúsculo de um astro, a ameaça da vida aos meus sonhos e minha crença de tudo poder. O destino claramente traçado por mãos impiedosas e sem razão. Estive a olhar sob os olhos cristalinos da Senhora Springs a tristeza duma vida que não deu certo. A minha vida que não daria certo. Estive num cemitério e não gostei do que vi; pelo menos não era como nas histórias que ouvi quando criança, onde envelhecíamos realizados e cansados dos louros duma vida gloriosa e cheia de lições.
Estava exausto. O contraponto entre a infrutífera alma da Senhora Springs, que aparentemente contentava-se com qualquer banalidade a ela oferecida, e a comemoração feliz de mais um aniversário da Telma sopesavam em mim uma perspectiva de viver morrendo. Era uma profecia muda e infeliz que proferia ali sentado a observar a mortandade feérica da anciã. Tudo regado a uma forçada ventura cuidadosamente arquitetada como um jogo do contente.
Dois anos depois a Senhora Springs morreu de Auzeimer e seu filho caçula continua vivendo da ajuda alheia, desta vez de seus irmãos que assoberbados antigamente não conseguiam estar próximos da mãe. Irmãos que culpados tentam, para tranqüilidade de suas auto-avaliações, já que ninguém estima-se em ser vil, ajudar o irmão caçula “infortunado”.
Com o cadáver da querida Springs uma parte de minhas ilusões se perdeu. Começo a ver o mundo gris e não me perco mais tão facilmente entre as faces alheias. É como se em minha nova jornada vagasse a procura de algo que no fundo sei nunca irei encontrar. Um carma irrefutável. Um movimento desprovido de qualquer esperança e motivo.
Recorrer a Deus? Deus com certeza sairia impune com a evasiva de sua magnificência sobre o destino torto dos carmicamente submetidos ao estigma de pecadores livres. Assim foi com a Senhora Springs, assim seria comigo.
- Olá rapaz.
Como um turbilhão fui subtraído duma outra dimensão e vi rodar a festa pela qual estivera envolvido todo o tempo. Tive a impressão de distanciamento e rápida chegada. Estive longe e fui trazido de volta por aquela Senhora que olhava-me de forma afável e delicada, como que se referisse a um neto.
- Sra. Springs?. Assustado, apressei-me em perguntar.
- Quem é Sra. Springs querido? meu nome é Virgínia. Vc esta bem? Respondeu-me a anciã.
No intervalo entre a minha pergunta e aquela resposta consegui distinguir o ocorrido. Estava na mesma posição em que havia sido brindado pelo olhar da Senhora – Virgínia então era seu nome - e numa fração de segundos idealizei uma história trágica. Agora podia perceber por onde havia vagado minha mente inquieta.
Durante as horas que se seguiram travei conhecimento com a encantadora Sra. Virgínia e tive certeza de que o destino que havia traçado para ela – então Sra. Springs - não guardava qualquer similitude com a realidade. Tinha em minha frente uma mulher feliz, não pelo alcance de suas metas e sonhos juvenis, mas pela satisfação de ter vivido maravilhada durante 91 anos.
Senti o peso de minha mente fértil e uma forte dor de cabeça.
A festa acabou e continuamos a nos envolver em histórias e lições. Eu, a Senhora Springs e Virgínia, todos os eu´s daquele homem solitário que acabara de se levantar da poltrona imunda dum quarto vazio na Av. Presidente Vargas, n° 07, centro de São Paulo.

Extravio

De que adianta dissimular indiferença se em minha chegada é por meus olhos que anseia?
Para que o embaraço das mãos e das palavras se quando o que mais queres é meu toque?
Por que distante se quando perto me queres mais perto?
Por que fugir se em seu quarto, sob seus lençóis encontra-me rijo a te suscitar?
Desencontro, advertência, incongruência, distancia. Interrogo-te em silêncio e sei que compreende a pergunta muda que cala fundo em seu olhar.

Aquele Pedro

Aquele era o Pedro, exposto. Tinha-o a sua frente e regozijar-se-ia futuramente por isso. Era uma espécie de prazer egoístico em poder, daquela alma, extrair o que ninguém pudera, como a tornar trivial a alma dum ídolo...
(contos inacabados de Pedro)